Acompanhamento ou prato principal?

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A nossa casa foi construída há quatro anos, na parte de trás de um terreno de um chamado compound balinês onde mora toda uma família, toda mesmo. Neste compound todas as gerações de uma mesma raíz casam e voltam para morar em uma casa contruída para o novo casal, mas sempre no mesmo terreno. As mulheres saem da casa da família para viver junto à família do marido. A família trabalha em equipe e todos ganham uma tarefa. Uns trabalham fora, ou na própria terra plantando, cuidando e colhendo, outros cozinham para a turma toda do compound, outro faz as oferendas e normalmente os mais velhos cuidam das crianças, que crescem soltas brincando na rua, no quintal, no campo. Com esse sistema familiar eles se protegem e, a menos que o sujeito apronte uma das boas, ele sempre terá a casa da família para morar e a comidinha pronta para desfrutar. A base das refeições é o arroz. Nasi Goreng (arroz frito misturado com ovo, legumes, frango ou peixe e camarão), Nasi Campur (arroz branco acompanhado por pequenas porções de carnes, vegetais, amendoins, ovo e camarão), Nasi bungku (de novo o arroz com alguns desses acompanhamentos, enrolado em folha de bananeira). Enfim, no café da manhã, no almoço, no lanche, no jantar, eles comem muito arroz e essa ainda é a terra do arroz.

Ainda, mas hoje sentada no quintal e aqui escrevendo encontrei Pak Made, o dono do arrozal que circunda a nossa casa. Ele está aqui todas as madrugadas. Começa cedo, não pára nem aos finais de semana. O arroz dá trabalho. Ele vive com os pés afogados na água, afundados na lama, agachado de um jeito que, só de olhar, me doem as costas. Tabalha de sol a sol. Mas nunca, nunquinha, vi um jovem por aqui. Ele tem orgulho da sua obra e gosta de confirmar que o trabalho agrada a todos: “Acha que a vista está bonita?” e eu me rendo a essa beleza e ao trabalho honrado deste senhor. Resolvi perguntar sobre seu filho, o que fazia, se nunca viria. E adivinhem: Wayan prefere trabalhar para nós, os estrangeiros. Ele leva os forasteiros para passear na ilha com seu carro novo. Não gosta da terra, dá muito trabalho, menos dinheiro. Me contou tudo isso com o sorriso de sempre, mas uma ponta de tristeza no olhar.

Fiquei em silêncio. Ele aproveitou para falar da casa que tem para alugar, se eu conhecia alguém, já que ele construiu no arrozal e é para estrangeiros. Até tenho um casal de amigos que poderia se interessar, mas a casa dele é de quatro quartos, para famílias grandes e não seria o caso. Aí não aguentei e perguntei mais. “O que vai acontecer quando Pak Made não quiser mais trabalhar na terra? Quem vai cuidar daqueles campos lindos, férteis e necessários?” Ele deu uma gargalhada e completou: “Ninguém. Eu vendo para alguém construir casas.”

Segundo consta, hoje 80% da economia em Bali é dependente do turismo. Entre 2004 e 2013 o turismo internacional cresceu 300%. Com uma população de mais de 4 milhões de moradores a pressão é crescente em relação a infraestrutura, trabalho e recursos naturais. Alguns atribuem o efeito ao sucesso do livro e do filme: “Comer, Amar e Rezar”, mas não importa o motivo, o que importa é que essa pequena ilha, que ganhou notoriedade mundial pelos recursos naturais e pela cultura local, aos poucos vai desaparecendo para virar mais um grande amontoado de gente. Ainda não estamos perto disso, não conheci a ilha de ontem, mas me assusto com a quantidade e velocidade de casas subindo ao meu redor em tão pouco tempo.

Também não posso acusar as novas gerações de buscarem trabalhos menos exaustivos e mais lucrativos. Mas ficamos pensando quais são os ganhos. Quais são as perdas? Qual o preço que se paga?

A natureza reclama, o lixo, o esgoto, os recursos naturais não darão conta. E o arroz – que aqui não é acompanhamento e sim a base – vai nascer de onde? Quem é que cuida do prato principal. E nós, seguiremos todos globais, iguais, buscando as mesmas coisas, a mesma moeda, com a mesma falta de sentido?

Desculpem a tempestade em plena sexta-feira. A ideia era seguir a ideia do saboroso texto da minha amiga Ana e escrever uma receita de arroz local. Mas como a receita nem sempre dá certo, Pak Made com seu orgulho e trabalho perdidos no campo mudaram o rumo e o tom dessa prosa.